Esta
entrevista a Fernando Peixeiro, jornalista da Lusa, a viver em Bissau há dois
anos, é uma interessante viagem à alma da capital da Guiné. Partilho a opinião
de que o bem mais precioso são mesmo as pessoas e a sua filosofia de vida!
Fonte: http://www.almadeviajante.com/viver-bissau-fernando-peixeiro/
Data: 6/11/2016, por Filipe
Morato Gomes
Bissau por quem lá vive: Fernando Peixeiro
O Fernando Peixeiro tem 50
anos, é jornalista da agência Lusa e está a viver em Bissau há 2 anos.
Convidei-o a partilhar connosco um pouco da “sua” Bissau, capital da
Guiné-Bissau, marcada pela esplanada do Calliste, pela ausência de museus,
cinemas e galerias de arte, e ainda pelo calor e humidade da cidade.
É um olhar diferente e mais
rico sobre Bissau – o de quem vive por dentro o dia-a-dia da cidade, estando
simultaneamente fora da sua “zona de conforto”, deslocado, como acontece a
todos os viajantes.
Este é o décimo primeiro post
de uma série inspirada no programa de televisão “Portugueses pelo Mundo”.
Em Bissau com Fernando
Peixeiro
Carnaval em Bissau
Define Bissau numa palavra.
Várias “uma palavra” podiam
definir Bissau, mas “África” parece-me bem. Ao contrário de outras cidades, em
Cabo Verde, em Moçambique ou na África do Sul, por exemplo, sente-se África
quando se chega a Bissau. O calor e a humidade desde logo, mas também o
trânsito confuso, o improviso das ruas e gente, muitas pessoas de um lado para
o outro, a maior parte jovens, as frutas em montes no chão, o barulho e os
risos francos.
Bissau é uma cidade boa para viver? Fala-nos das expectativas que
tinhas antes de chegar, e se a realidade que encontraste bateu certo com a
ideia preconcebida que trazias.
Bissau pode ser uma cidade boa
para viver. Depende das expectativas, que têm de ser pouco exigentes.
Para um ocidental não será uma
cidade confortável, especialmente pela falta crónica de luz e de água. A EAGB,
empresa estatal que devia fornecer eletricidade e água funciona mal ou não
funciona. Umas vezes porque não tem combustível para os geradores, outras
porque as máquinas se avariam, outras porque… sim. O resultado é semanas
inteiras sem energia, dias e dias sem água.
É por isso frequente ser
Bissau uma cidade escura durante a noite, com luzes numa ou outra rua
provenientes de geradores particulares, um dos acessórios fundamentais para
quem quer viver em Bissau. Porque sem eles não há ares condicionados e a
temperatura e humidade não são amigas de quem chega ao país.
Depois, as ruas não têm
manutenção e algumas mais parecem riachos, a que se juntam os esgotos a céu
aberto. Tudo junto torna a cidade pouco amigável, apesar de haver os bens
alimentares essenciais (quase sempre) e comércio aberto até quase à meia-noite.
Não sendo espartana, Bissau é
rústica. Não me dececionou nem me seduziu. Já tinha estado em Bissau em 2008 e
sabia o que me esperava, como também sabia que pouco teria melhorado. Ainda
assim, surpreenderam-me algumas boas estradas, luz solar e até semáforos (já
nenhum funciona entretanto), luxos de uma Bissau sempre enredada em intriga
política, golpes de Estado, instabilidade e exigências de paz.
E o que mais te marcou em
Bissau?
Bissau são as ruas
esburacadas, a falta de água e de luz, o pó e o calor, a humidade e as
trovoadas tropicais, o peixe fresco, as mangas e as papaias vendidas na rua, o
caju e a mancarra (amendoim).
É a cerimónia do hastear e
arrear da bandeira na Praça dos Heróis, quando as pessoas param e até saem dos
carros na rotunda, o pão em baguetes vendido à beira da estrada e que às vezes
sabe a gasóleo, os meninos engraxadores e vendedores de saldo para telemóvel, o
“ka misti” (não preciso) que se diz vezes sem conta e o barulho dos geradores.
É experimentar comida senegalesa, o cozido ou ouvir o fado e assistir a grandes
discussões sobre o futebol português.
É o porto, a avenida dos
Heróis Nacionais, o mercado do Bandim e a rotunda da Baiana. E o calor, sempre
o calor de fevereiro a novembro. Bissau é tudo isto e tudo marca.
Como caracterizas as pessoas de Bissau?
Bissau já foi uma cidade muito
bonita. Adivinha-se pelo que sobrou e sente-se pena do estado a que chegou uma
capital. Mas, porque as cidades são as pessoas que nelas vivem, é uma capital
especial. A mais especial que já conheci. Os Bissau-guineenses são simpáticos,
afáveis, hospitaleiros e educados. Se me perguntarem um dia do que mais sinto
saudades direi sem pensar que é das pessoas.
As pessoas que cumprimentam na
rua ainda que não conheçam e que sorriem, que são solidárias se estás com
alguma dificuldade, que são calorosas no trato (apertei até hoje a mão a
centenas de pessoas que não conhecia), que não insistem para que compres isto
ou aquilo, que se preocupam, que querem saber, que te perguntam como acordaste,
como estás de saúde e como está a tua família. E o melhor de tudo é que no
interior do país ainda são mais fantásticas.
Os Bissau-guineenses são
simpáticos, afáveis, hospitaleiros e educados
Como terminarias esta frase: “Não podem sair de Bissau sem…”
Não podem sair de Bissau sem
beber a água do Pindjiquiti. O Pindjiquiti é o porto de Bissau, tristemente
célebre devido ao massacre aí ocorrido em 1959, quando a polícia do regime
disparou a matar contra uma manifestação de marinheiros que reclamavam aumento
de salários.
Os guineenses lembram o ato em
momentos políticos mas hoje, na rua, fala-se a um estrangeiro de Pindjiquiti
para lhe dizer que tem de beber a sua água. É que, diz-se em Bissau, quem bebe
a água de Pindjiquiti fica para sempre “preso” à cidade. E ao país.
Vamos complicar a conversa e tentar fazer um roteiro de 3 dias em
Bissau. Indica-nos as coisas que, na tua opinião, sejam “obrigatórias” ver ou
fazer.
Infelizmente, o melhor da
Guiné-Bissau está fora da capital. Primeiro do que tudo as ilhas dos Bijagós,
as praias, a tranquilidade, o peixe, a água tépida e transparente. Depois o
interior e as suas gentes, a praia de Varela, no norte, já perto do Senegal.
Para sul, o Saltinho, as
lagoas e o parque de Cantanhez. Bafatá e Gabu, as estradas relativamente em
condições, a vida que por elas corre, os mercados, com sorte uma cerimónia ou
outra das etnias Balanta, Fula ou Papel.
A capital não tem muito para
oferecer, nem praia de jeito tampouco. Guarda-se um dia para ir ver a do Suru
(só ver) e percorrer devagar a estrada de Prabis (que leva à praia de Suru), a
azáfama, o vinho de caju, as crianças descalças que pedem fotos, as casas
precárias e quem lá vive.
O centro de Bissau, a praça
como aqui se chama, vê-se num dia. Com a pressa que o calor (ou a chuva, de
maio a novembro) deixar porque as casas da era colonial e as suas belas (e
gastas) fachadas por lá se mantêm. A praça dos Heróis é o centro e de lá
chega-se ao porto, à Assembleia Nacional, à rotunda da Baiana, ao estádio Lino
Correia, à zona de Santa Luzia, tudo a pé.
O centro cultural
franco-bissau-guineense fervilha sempre de iniciativas. Haverá de certeza um
concerto, uma exposição, alguém que canta, alguém que faz artesanato, alguém
que fará dar por bem empregue uma tarde. E num par de horas pode-se sempre entrar
por um bairro da periferia adentro, mergulhar na Bissau profunda e real, e
regressar pelo Bandim, o maior mercado do país, parte a céu aberto.
Ouvidos atentos à profusão de
línguas, olhos atentos à profusão de cores, narinas atentas à profusão de
cheiros. E sentidos atentos à carteira, em alguns dos lugares.
De certeza que sabes alguns truques e dicas para se poupar dinheiro em
Bissau. Conta-nos.
A forma como um estrangeiro,
branco, consegue poupar dinheiro é não fazer compras. Pedir a alguém do país
para que as faça. Porque os preços sobem quase sempre para brancos. Bissau é
uma cidade cara e fazer compras nos minimercados é incontornável mas frutas e
verduras podem comprar-se nas ruas. Bem discutido o preço baixa.
Deixar essa tarefa para o fim
da tarde é mais económico, quando os vendedores estão com pressa de despachar o
produto e ir para casa. Ou ser o primeiro a comprar, porque há também os que
fazem um desconto especial para o primeiro cliente. E, de preferência, evitar
os restaurantes caros (que são muito caros). Há restaurantes baratos, mas o
melhor mesmo é comer em casa.
Falemos de comida. Que especialidades gastronómicas temos mesmo de
provar? Pode ser um petisco, um prato típico, ou algo mais “estranho”…
Tropeça-se em Bissau com dois
ou três pratos típicos, como o caldo de mancarra (amendoim) ou a galinha à
cafriela (galinha do campo com um molho ácido e cebolada) ou ainda caldo de
chabéu (com óleo de palma e quiabos). Peixe preparado da forma senegalesa também
se encontra facilmente.
Num restaurante perro da 2.ª
Esquadra, como gazela muitas vezes e porco do mato, tudo delicioso. Por
encomenda pode comer-se farfana, uma espécie de rato gigante que aqui chamam
umas vezes Joaquim Doido e outras um nome que me recuso a escrever. De tudo
isto, escolheria a gazela e o porco do mato. Em Bissau, mas também em Prabis ou
em Quinhamel (não muito longe da capital), comem-se ostras baratas antes de
começar a época das chuvas. Em grande quantidade e em molho de limão picante,
se faz o favor.
Circulando por uma rua de
Bissau, capital do país
Imagina que queremos experimentar comidas locais. Gostamos de tascas,
botecos, lugares tradicionais com boa comida e se possível barato. Onde vamos
jantar?
Hoje jantamos no restaurante
do Manelinho, o tal da 2.ª Esquadra. Fica meio escondido, entra-se num
labirinto de becos, mas o Manelinho faz-nos sentir em casa. Gosta de falar do tempo
em que viveu em Portugal.
Não longe do Estádio Lino
Correia, no centro, almoçamos amanhã na Senegalesa. Tem umas espetadas de
pedacinhos de carne que acompanham com molhos típicos e que nos fazem sempre
regressar. Só não vendem bebidas alcoólicas desde que o dono foi a Meca. Ainda
no barato e para quem tem saudades, o Benfica (Papa Loca) serve umas boas
pizzas, que rivalizam com as do Bistrô (mais caras).
No Gran-Via come-se comida
típica e saborosa mas já um pouco mais cara. Também o dono gosta de falar de
Portugal e dos tempos que lá jogou futebol. Mais caros mas com comida guineense
e portuguesa há que ir à Padeira Africana e à Adega do Loureiro.
Como é a movida em Bissau? O que sugeres a quem queira sair à noite?
Nos últimos dois anos, Bissau
tornou-se uma cidade menos segura. Pelo menos aumentou bastante a perceção do
perigo. Ainda assim, e mesmo na época das chuvas as discotecas enchem-se, a única
distração noturna da cidade.
Os estrangeiros menos afoitos
podem começar por jantar num restaurante do centro, beber uma cerveja no Kiss
(esplanada na rua e onde quase sempre sopra uma brisa) e passar depois pelo X,
uma discoteca junto à rotunda da Baiana.
De lá ruma-se a outra, o
Insónias, que dá para ir a pé, e acaba-se a noite no Tabanka, também a pé. Se
ainda assim há vontade de continuar, há outras discotecas, mais para os locais,
na avenida dos Combatentes. Pelas cinco da manhã há ainda onde se coma uma
bifana, mas a noite está a terminar. E o dia a começar, que em Bissau é a manhã
o período mais produtivo.
Escolhe um café e um museu.
Para quem quer o espaço mas
também a bebida há dois cafés a sério. O Ponto de Encontro, mais central, mais
movimentado, onde o café é bom e os petiscos também, e o Bate Papo, mais tranquilo
mas muito agradável. Na praça dos Heróis há uma excelente esplanada mas nunca
para beber café (é quase intragável).
Em Bissau não há museus.
Uma das decisões críticas para quem viaja é escolher onde ficar –
lugares centrais que permitam andar a pé, acesso a transportes públicos,
segurança. No caso de Bissau, em que zona nos aconselhas a procurar hotel?
Pela facilidade em chegar a
todo o lado, escolheria o Hotel Coimbra. Vai-se dele a pé a cafés e
restaurantes, a discotecas, ao comércio e ao porto. Sobe-se a rua estamos no
Kiss e na praça dos Heróis, desce-se e está o porto de Pindjiquiti. Ao lado
fica a catedral, atrás o hospital, em frente os correios e as lojas. O mesmo se
aplica ao Hotel Malaika. Agradável e tranquilo e oferecendo boas condições, há
o Azalai. Mas fica mais longe do centro.
Tens alguma sugestão para quem quiser fazer compras em Bissau?
Perto do Hotel Coimbra, na
rua, compra-se todo o tipo de artesanato. Guineense, é certo, mas também de
tudo um pouco. Estatuetas do Mali, máscaras da Guiné-Conacri, artefactos do
Senegal ou do Burkina-Faso.
Na rua do Ministério da Saúde
(quase em frente) há um centro de artesanato, com tudo isso e mais tecidos e
muitas peças de madeiras exóticas. E depois o Bandim, o grande mercado, onde
tudo se discute e tudo se vende. Tudo mesmo.
Antes de te despedires, partilha o teu “segredo” de Bissau; pode ser
uma loja, um barzinho, um restaurante, um parque, uma galeria de arte, algo que
seja mesmo “a tua cara”.
Não há museus, nem cinemas,
nem galerias de arte, nem quiosques, nem barzinhos, nem parques em Bissau. Não
há recantos agradáveis nem esplanadas bonitas para se ler um jornal ao sábado
de manhã. Não há miradouros, nem artes de rua, nem música ao vivo (acontece às
vezes no centro cultural francês ou no brasileiro, por exemplo) e nem teatro.
Ficaria por uma bebida fresca
a meio da manhã na esplanada do Calliste, na rotunda da Baiana, e por um café
tranquilo ao fim da tarde no Bate Papo. E ficaria muito bem!
Obrigado, Fernando.
Encontramo-nos numa próxima viagem a Bissau.
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